segunda-feira, 22 de junho de 2015

"A menor minoria é o indivíduo" - Só que não

Muitas vezes quando estamos falando sobre minorias e as opressões estruturais enfrentadas por estas, somos retrucadas com a famosa frase da filósofa Ayn Rand:
"A menor minoria é o indivíduo. Aqueles que negam os direitos individuais não podem se dizer defensores das minorias."

Me parece que essa frase tem o mesmo problema que o conceito da meritocracia: ambos carregam conceitos lindos, um discurso e teoria aparentemente irrefutável - mas caem na falácia do mundo justo.

Vamos primeiro tentar entender o que essa frase tenta passar...

Imaginemos um mundo onde não existam racismo, machismo, homofobia, transfobia, preconceito de classe, capacitismo, transfobia, xenofobia, etc.
Neste mundo não existe um sistema pré-estabelecido que beneficia alguns grupos em detrimento de outros: todos saem exatamente do mesmo ponto de partida, e tem exatamente as mesmas chances de enfrentar dificuldades no caminho.

Seria inocência presumir que numa sociedade ausente de opressões e privilégios, ninguém teria problemas. Sem dúvida, cada indivíduo passaria por uma série de obstáculos, preconceitos, problemas e limitações.

Porém, nessa sociedade hipotética que não tem conceitos pré-estabelecidos de que atributos são melhores ou piores, esses problemas seriam pontuais na vida desse indivíduo: na escola esse indivíduo seria excluído pois os amiguinhos gostam de futebol e ele gosta de basquete. Posteriormente, sofreria pois a menina de quem gosta o acha muito magrelo. Na faculdade, sentiria limitações por ser tímido, e se sentiria explorado por ser "nerd". No emprego, sentiria um preconceito vindo de seus pares pois é muito focado e se destaca nas entregas. 

No entanto, é muito provável que estes problemas não sejam crônicos em sua vida: em algumas esferas sua timidez e foco são negativas, em outras esferas são características elogiadas; algumas meninas não se sentem atraídas pela magreza, mas outras tantas se sentem. 

E assim seria com todos os indivíduos formadores dessa sociedade.
Dentro deste contexto, todas as lutas são individuais, e portanto não haveria sentido em - como sociedade - direcionar atenção para um problema ou outro.

É isto que essa frase nos traz: se todos temos problemas, não é justo concentrar esforços e políticas na resolução de um problema específico. 
E no contexto acima, essa lógica é perfeitamente cabível.

Mas vamos voltar à realidade: uma sociedade onde existem opressões sistêmicas que foram enraizadas na sociedade há tanto tempo, e são reproduzidas na nossa educação e pela nossa mídia de forma tão sutil, que o resultado foi uma sociedade desigual.
Uma sociedade que privilegia alguns grupos em detrimento de outros.

E -como já falei aqui em posts anteriores - o fato de você pertencer à algum grupo privilegiado não quer dizer que você não faz parte de outro oprimido. E também não quer dizer que você não terá sua cota de problemas. 
Mas estes problemas serão individuais e pontuais - como a vida do indivíduo hipotético que descrevemos acima.

Nessa sociedade desigual em que vivemos, existem algumas características que fazem com que as pessoas portadoras delas sofram limitações e tenham problemas na maioria - senão em todas as esferas de sua vida.

Quando falamos da luta das minorias, não queremos dizer que os problemas dos outros são menos doloridos individualmente que os nossos.
Não queremos lutar por privilégios para determinados grupos, não estamos negando a igualdade.

Estamos dando nome à um sistema desigual, para que possamos combatê-lo.

E quando alguém sugere que "a menor minoria é o indivíduo", ela está ignorando que existem problemas que afetam grupos inteiros, o tempo todo. Ela está dizendo que se absolutamente TODOS não sofrem de algum problema, esse problema não deve ser combatido pela sociedade.
Quando alguém sugere que lutemos pela "igualdade para todos" de forma genérica, sem endereçar minorias, esta pessoa está fechando os olhos para a desproporção dessa "igualdade".
Quando alguém nega a luta destas minorias, está basicamente dizendo "eu não sofro -ou não reconheço sofrer- deste mal, portanto ele não existe".

Como é parte da sabedoria popular, só podemos resolver um problema quando nos damos conta dele.
Então vamos nos dar conta que existem problemas maiores do que as nossas necessidades individuais e lutar juntos para extinguí-las!

Imagina que lindo será quando a sociedade hipotética acima for real, e a frase de Ayn Rand for realmente aplicável? =)





quinta-feira, 18 de junho de 2015

Redução não é solução, não importa de onde você olhe.

O debate da redução da maioridade penal é um que - sinceramente - me dá calafrios.
Porque me faz perceber o nível dos debates políticos e sociais. E é um nível bem baixo.

Parece que 90% da população não passou do primeira fase do debate, que é o pensamento óbvio e instintivo de "cometeu crime tem que ser punido e ponto final".

Mas a verdade é que, não importa de que lado você olhe a questão, a redução simplesmente não faz sentido.
Então esse texto é pra isso, pra olhar a questão de todos os pontos de vista, e mostrar que em NENHUM deles a redução represente uma solução ou sequer uma melhora.

SE VOCÊ....

1) ....é de classe média/alta e acha que não precisa refletir mais que isso não, o que é certo é certo.

Veja bem, redução no filho dos outros é refresco...
Quantas pessoas que passaram temporadas (vulgo mais de uma noite) na cadeia você conhece?
Todo mundo conhece um amigo que foi pego com droga, uma amiga que dirigiu bêbada, um conhecido que aos 17 transava com menina de 15, uma galera que entrava na balada com RG falso.
Mas pra quem vive num meio de classe média (como eu inclusive), nenhuma dessas pessoas está presa.
Isso acontece não porque a classe média é muito íntegra, e sim porque nós temos dinheiro pra pagar um bom advogado. Nós temos dinheiro pra molhar a mão do policial quando é necessário. A justiça no Brasil é extremamente seletiva, isso não é mistério pra ninguém.
O sistema punitivo do nosso país segrega. Fechar os olhos pra isso é dizer que pra você tá tudo bem que a lei só sirva pra punir os mais pobres.
Então é isso mesmo, reduz a maioridade penal porque o MEU filho eu sei que vou poder defender, e sei que ele não vai ficar na cadeia.
Ou seja, pra quem tem grana essa redução não faz diferença nenhuma.

Mas essa visão é bem egoísta.
Você não se dá o trabalho de analisar melhor a questão por isso: porque o seu filho não vai sofrer com essa mudança.
Mas sabe quem vai sofrer - ou morrer - por causa dessa mudança?
O moleque pobre, que cometeu o mesmo delito que seu filho ou seu amigo.
Porque ele não tem um bom advogado. Porque a cadeia está bombando de casos que nem sequer foram julgados (!), mas como esses presos sem julgamento não são "ninguém importante", eles são invisíveis.

Porque é fácil dar o discurso pronto do  "menor de idade sabe o que tá fazendo", que "menor sabe distinguir o certo do errado" ou que "aos 16 já não é criança e sabe o que faz".
Mas quando for o SEU filho que for pego com maconha, a SUA filha pega com documento falso na balada, vamos ver se vcs não vão contratar um bom advogado pra que tudo acabe em pizza.
Claro que vão. Porque o filho dos outros é diferente. Porque existem razões que justifiquem o erro do seu filho, mas não existem razões que justifiquem o trombadinha?


2) ....acha que tem muito menor cometendo crimes sem nem pensar duas vezes porque sabem que não serão punidos. E tá com pena leva pra casa, quero ver se fosse com você, um menor te assaltando/estuprando/assassinando.

Vamos fazer uma linha de raciocínio aqui....
-O menor que comete o crime está errado, e nada justifica seu erro;
-Isto posto, há de se avaliar o background do menor - quais oportunidades lhe foram dadas e negadas, qual perspectiva de futuro lhe era oferecida, e o que o levou à cometer o delito. Continua não justificando nada, mas assim temos uma visão melhor do que levou o crime a acontecer. É preciso compreender um problema para poder solucioná-lo.
-Essa questão de "comete o crime porque sabe que não vai ser punido" dá a entender que se o menor soubesse que será punido, ele não cometeria o delito.
Nesse racioncínio, quanto mais punitiva é a justiça, quanto mais se joga gente na cadeia, menor a violência. Pois se a justiça é implacável, a pessoa deixaria de cometer o delito por medo dela.
Porém, esse argumento não procede, e é só olhar alguns dados pra concluir isso: o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo - ou seja, prende pra caceta - e ainda assim está em sétimo lugar no ranking da violência mundial.
-É importanto entender que não podemos sair mudando leis ou julgando pessoas de acordo com emoções, experiências pessoais ou sentimentos de vingança. A lei não deve contemplar meu desejo de vingança, já não estamos na era do olho por olho, dente por dente. Evoluímos por uma razão: justamente porque cada caso é um caso e julgar uma situação em preto e branco raramente dará conta de sua complexidade. Ou seja, pouco importa se "se fosse comigo, eu ia querer que apodrecesse na cadeia".
-Se um crime grave acontecesse com alguém que amo pelas mãos de um menor, emocionalmente é óbvio que eu ia querer matar o menino com minhas próprias mãos. Mas racionalmente, eu acho que ele deveria ir para o sistema socioeducativo. Simplesmente porque na cadeia ele tem 70% de chance de fazer merda de novo, enquanto no socioeducativo, tem 20%. Ou seja, eu ia querer que ele não fizesse aquilo com mais ninguém nunca mais, e por mais que tenhamos a impressão contrária, o sistema que chega mais perto de conseguir isso é o sócio-educativo.
-É preciso entender também que quando falamos em redução da maioridade, pensamos só em casos extremos como homicídios e estupros, que são a exceção da exceção (apesar da mídia tentar nos convencer do contrário).
E esquecemos de pensar no que vai acontecer na vida real, na maioria dos casos: menores de idade, provavelmente negros e pobres, sendo presos por crimes menores (porte de droga, sexo com menor, documento falso, pequenos furtos), e indo pra uma cadeia se tornarem criminosos profissionais. Além de não ser humano, simplesmente não é inteligente.
-Podemos concluir - através de dados e fatos - que encarceirar não só não vai diminuir o problema, como pode aumentá-lo. Vale a pena jogar menores na cadeia por crimes menores, sob o risco de torná-los piores?
E se concluímos que encarceirar não resolve, o que resolve?
Aí entra a importância de entendermos o background do menor, pois a partir daí entendemos que violência se combate com igualdade social, educação e oportunidades, não com polícia e cadeia.


3) ...não tá nem aí pra o que vai acontecer com o criminoso, não quer saber de onde ele veio e o que o fez cometer o crime... você só quer que a violência diminua. Que menos inocentes morram.

Se a intenção é diminuir a violência e salvar vidas, a redução só piora!
Considerando que no sistema prisional a reincidência é de 70%, e quem sai geralmente comete crimes piores do que na primeira vez; e no sistema sócio-educativo a reincidência é de 20%, a conta é simples:
COM REDUÇÃO: Temos 20 menores que cometeram crimes. Destes 20, 10 (a proporção seria menor, mas vamos facilitar) cometeram crimes leves. Com a redução, eles vão pra cadeia.
Quando saírem - porque a maioria sai eventualmente - 14 deles voltarão a cometer crimes. E dos 10 que cometeram crimes leves da primeira vez, agora 7 irão cometer crimes mais pesados.
Saldo: temos 20 crimes antes da cadeia, e 14 crimes pós-cadeia.
SEM REDUÇÃO: Temos os mesmos 20 menores que cometeram crimes, dos quais 10 cometeram crimes leves. Sem a redução, eles vão pra o sistema sócio-educativo.
Quando saírem, 4 deles voltarão a cometer crimes.
Saldo: temos 20 crimes antes da cadeia, e 4 crimes pós-cadeia.
O que te parece melhor para reduzir a violência???



E agora, José, qual seu argumento?