quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Representatividade e cultura

Dos últimos 10 livros que você leu, quantos foram escritos por mulheres?
E autores não americanos ou brasileiros?

Dos últimos 10 filmes, quantos foram dirigidos por homens brancos hétero dos EUA ou da Europa?

Entre as 10 pessoas que você mais admira... quanta diversidade há nessa lista?

Um vez, num desses workshops de empreendedorismo, no qual 70% dos participantes (o workshop foi oferecido gratuitamente para alguns alunos do ITA) e 100% (sim, 100%) dos palestrantes eram homens, o apresentador estava falando sobre aquela pergunta básica para qualquer negócio: "qual problema seu empreendimento está solucionando?"
Ele prosseguiu dando exemplos (sempre masculinos, em diversas áreas), e quando chegou no exemplo de um "problema feminino", ele falou de moda (!), e disse que o problema seria que ela quer "ser a mais bonita e causar inveja em todas as amigas" (!!!).
Óbvio que eu causei e fiz ele pedir desculpas hahaha mas não é esse o ponto.
A questão era: olha a imagem que ele tem de mulheres, o único exemplo que ele conseguiu pensar ali na hora.

Meu ponto é: por vivermos em sociedade, construímos nossa impressão das coisas (e de nós mesmos) baseado em experiências, livros, filmes, coisas que os outros nos dizem (pais, amigos, a TV, as revistas).
Quando essa sociedade só nos leva a ler livros de autores homens, ver filmes de diretores homens, admirar feitos e pessoas sempre masculinas, quando a mídia só dá ênfase ao que homens dizem (mesmo que existam mulheres dizendo a mesma coisa); o resultado disso só poderia ser um: veremos a classe "mulher" através de uma ótica masculina. *

Então fica aqui uma questão: a imagem que temos de amizades femininas, dos relacionamentos, do prazer feminino, das mulheres em geral não foi muito construída em cima de uma narrativa masculina?
E assim sendo, será que essa imagem é fiel?

Recomendo muito esse vídeo (link abaixo) da Chimamanda Ngozi Adichie, no qual ela estende essa reflexão para todas as classes.
Vamos buscar diversificar nossas referências - é fato que teremos uma visão muito mais realista, mais rica, mais empática do mundo e das pessoas.
Isso é sim um esforço extra, pois a mídia e a sociedade nos mostram muito mais protagonistas homens (reparem), mas vale a pena.
Não é uma questão de "impor cotas" no seu gosto pessoal, e sim problematizar PORQUE o seu suposto "gosto pessoal" só traz homens/brancos/héteros.


https://www.youtube.com/watch?v=wQk17RPuhW8


*E antes que alguém venha dizer que as produções culturais e intelectuais de mulheres só não aparecem mais porque não são tão boas -bitch, please- vale refletir sobre quem está nos cargos de poder de produtoras, editoras e empresas de conteúdo em geral - ou seja, quem está selecionando qual conteúdo chega ao público.
Se você também acha que históricamente só houveram homens ali porque as mulheres não se esforçaram o suficiente ou não estavam interessadas, dê um google no ano em que as mulheres tiveram direito ao voto ou direito a trabalhar sem a autorização de seus maridos - e lembre-se que mudanças culturais demoram mais tempo para se estabelecer do que uma lei passada.
E se mesmo assim não entendeu, vou deixar alguns links aqui embaixo de experimentos sociais que mostram como o preconceito age as vezes sem nem percebermos.

http://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/1463-o-mercado-editorial-e-as-escritoras.html
http://www.huffingtonpost.com/2014/09/02/jose-joe-job-discrimination_n_5753880.html
http://whatwouldkingleonidasdo.tumblr.com/post/54989171152/how-i-discovered-gender-discrimination
http://blogs.scientificamerican.com/unofficial-prognosis/study-shows-gender-bias-in-science-is-real-heres-why-it-matters/
http://gender.stanford.edu/news/2014/why-does-john-get-stem-job-rather-jennifer
http://advance.cornell.edu/documents/ImpactofGender.pdf
http://www.forbes.com/sites/ruchikatulshyan/2014/06/13/have-a-foreign-sounding-name-change-it-to-get-a-job/
http://www.povertyactionlab.org/publication/are-emily-and-greg-more-employable-lakisha-and-jamal-field-experiment-labor-market-discr


domingo, 27 de setembro de 2015

Minha parceira? Só reclama!

Os relacionamentos na nossa sociedade não são construídos somente de amor.
Idealmente o amor está lá sim, e é bem importante, mas quando se estabelece um relacionamento, estabelecemos uma série de compromissos.

Alguns destes compromissos são mais individuais - um dos indivíduos sente necessidade de tal atitude vinda de seu parceiro, alguns são consensos entre o casal - algo que os dois julgam precisar para que o relacionamento funcione, alguns são compromissos já dados pela sociedade como padrão.

Recentemente começou a me incomodar algo que sempre esteve presente em grupos: um certo consenso de que as mulheres são chatas em seus relacionamentos. São chatas com seus parceiros. A piadinha mais comum é de como um namoro/casamento é algo terrível para os homens, algo chato, um problema, algo que eles estão sendo obrigados.
Nessas horas a gente percebe como a sociedade é poderosa e eficiente em colocar alguns padrões em nossa cabeça e nos fazer aceita-los como normais. Com muita frequencia, nós mulheres estamos num grupo, ouvindo nossos parceiros falarem sobre como somos chatas e como seus amigos solteiros devem fugir de um relacionamento, e isso nos parece tão normal - "homem é assim mesmo" - que não nos ofende.

Mas se pensamos por um segundo: COMO isso não nos ofende?
Eles estão dizendo na nossa frente que estar conosco é um estorvo, um grande esforço. Que nós somos chatas e eles são grandes homens que se dispuseram a estar conosco, APESAR de tudo. Apesar de como aquele relacionamento os "controla", tira suas liberdades. Estão dizendo na nossa cara - e tentando fazer soar menos pior pois é "só uma piada" - que o relacionamento e a parceria que vocês estabeleceram é algo que ele não recomenda aos amigos.

Aqui vai então uma breve reflexão baseada em qualquer conversa de bar.

Um compromisso do casal é para uma divisão igual das tarefas do lar - especificamente, na hora do jantar, foi combinado que se um cozinha, o outro lava. 
O que acontece: 2 vezes por semana eles comem fora, ela cozinha 4 vezes por semana, e ele cozinha 1 vez por semana. Quando ela cozinha, é uma refeição completa (arroz, um purê de batatas, um frango grelhado, uma saladinha). Quando ele cozinha, é o arroz e um congelado que foi apenas colocado no microondas.Quando ela cozinha, que é a imensa maioria das vezes, existe um prazo para cumprir essa tarefa: afinal se você "deixa pra amanhã", você deixa de jantar. E quando ele vai lavar a louça, ele posterga, deixa a louça acumular, deixando a pia cheia. Ela se incomoda e pede para ele lavar, como é o combinado. Um adendo aqui: se é o combinado, ela não deveria ter que pedir, pra começo de conversa, não? 
Ele posterga mais um pouco. Ela pede de novo. Ele posterga mais um pouco. Ela se cansa, lava, e briga com ele. 
Ela é chata.

Um compromisso do casal é a fidelidade.
O que acontece: ele a trai e ela fica sabendo. Ela perdoa, mas se torna mais ciumenta, mais desconfiada. Ele não tem nenhuma atitude que busque reconquistar a confiança dela, e continua fazendo brincadeiras sobre outras mulheres, mantendo conversas com ex-namoradas no whatsapp, adicionando meninas no facebook no dia seguinte de uma balada que ele foi sozinho. Ela pede que ele sempre conte para ela onde vai, e ligue quando chegar em casa se sair sem ela. 
Ele não liga. Ela briga com ele.
Ela é chata.

Um compromisso do casal é que a noite os cuidados do filho sejam divididos entre os dois. Durante o dia ela cuida com a criança, e ele trabalha, mas se estabelece que ele evitará ao máximo ficar até muito tarde no trabalho, para dividir o cuidado na parte da noite.
O que acontece: com alguma frequência, ele faz hora extra. Ela reclama que enquanto ele fez hora extra ela deixou de fazer algo por ela que poderia fazer se ele estivesse lá para fazer sua parte. Ele diz que as vezes fica mais no trabalho justamente pq sabe que ela vai reclamar. Ele faz mais horas extras. Ela reclama.
Ela é chata.

Um compromisso do casal é que ele não beba além da conta (por além da conta, entenda-se vomitar, passar mal, dormir na sarjeta, dar vexame, fazer ela carregá-lo ou prejudicá-la de alguma forma) com muita frequência. Ele bebe além da conta. Ela reclama, ele diz que vai melhorar. Ele bebe além da conta de novo. Ela reclama, ele pede desculpas. Ele bebe além da conta de novo. Ela briga, diz que não aguenta mais, fica brava por dias. 
Ela é chata.

Notamos um padrão:
Ela sempre está "sendo chata" quando se irrita porque se rompeu algum compromisso do casal.

Outra reclamação constante entre os homens, outra razão pela qual suas parceiras são "chatas", é que quando mulheres brigam, nunca é por aquele caso e fim de história. Ela lembra de todos os outros casos que aconteceram antes tal qual aquele.
Eles acham isso ruim, parece que isso torna a briga pior do que teria que ser porque vem carregada de um certo "rancor".
Eles ignoram que em todas essas vezes anteriores que não resultaram em grandes brigas, ela estava relevando, ela estava respirando fundo e "dando um desconto", ela estava evitando uma "briga boba".
Ignoram que todas as vezes em que elas "relevaram", elas estavam segurando aquele relacionamento sozinhas, elas estavam fazendo a parte delas E A DELES.
E que portanto, a briga "feia" e cheia de antecedentes só acontece porque o problema é reicidente. Porque o compromisso foi quebrado diversas vezes.

Fica claro até aqui que essa chatisse que é pintada não aconteceria se o parceiro fosse fiel ao combinado?
Será que é justo chamar sua namorada de chata?
Será que é respeitoso com a mulher que você ESCOLHEU ter um relacionamento, fazer essa quantidade de piadinhas de "namorada chata", "casamento é uma cilada", "amigos solteiros, fujam!"???
Será que o fato de ser uma "piada" realmente é uma desculpa para esse desrespeito?
Será que uma piada repetida à exaustão não é sintoma de um problema maior?

Será que muitas das coisas que uma mulher cobra de um homem num relacionamento não são apenas o cumprimento de um compromisso firmado pelos dois?
Não são apenas essa mulher tentando amar seu homem como um namorado/marido, e não como uma mãe? Não seria apenas uma mulher tentando amar um adulto?
E se algumas atitudes tidas como infantis são muito importantes para você, você está comunicando isso claramente para sua parceira? Essas atitudes a prejudicam diretamente? Você, como parceiro, não deveria levar em conta o bem estar de sua parceira inerentemente, sem que ela precise te lembrar disso?

E só para finalizar, pra quem argumentar que todo o problema advém dos compromissos estabelecidos, e que seria melhor simplesmente amar sem amarras, sem "complicar" com esse excesso de compromissos.
Quem estaria se beneficiando da ausência desses compromissos?
Será que na sociedade como ela é construída hoje, toda a responsabilidade da manutenção do relacionamento não recairia sobre a mulher?
Levando em conta os compromissos mais operacionais, se não for feito nenhum compromisso, ainda assim alguém teria que cozinhar, lavar a louça, cuidar da criança, certo? Quem o faria, se nada for combinado? E quem se beneficia desse sistema? Para quem seria cômodo não firmar compromisso nenhum nesse sentido?
E levando em conta compromissos mais standard como a fidelidade: será que ele estaria confortável se ela quebrasse esse compromisso também?

Fica a reflexão: será que não estamos deixando a manutenção do relacionamento a cargo das mulheres? Será que isso é justo?

Enquanto você chama ela de chata, ela cumpre sua parte do compromisso.
Você que é "legal"?




quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Você não precisa ser feminista

Feministas são pessoas que lutam contra o machismo.
Logo, você não precisa ser feminista.

Afinal, pode ser que você não se incomode com o machismo.
Pode ser que você nem o veja, e portanto nem acredite que ele existe.

Pode ser que você não se importe que a cada minuto uma mulher é estuprada no Brasil, ou que 88% das vítimas de estupro sejam mulheres e 98% dos estupradores sejam homens.
Pode ser que você não se importe que a violência doméstica é uma das maiores causas de mortes não-naturais de mulheres.
Pode ser que você acredite que, apesar do dados mostrarem que são sempre homens agredindo mulheres, isso não passa de uma coincidência, e não tem nada a ver com a nossa cultura ou com a forma que a sociedade enxerga as mulheres.

Pode ser que você não se ligue para as cantadas na rua, pode ser que você ache que "homens são assim mesmo", ache até legal, e pode ser que você nem ande tanto na rua assim pra sentir isso na pele.
Pode ser que você não ande em locais mais isolados e não sinta medo toda vez que um homem olha pra você daquele jeito "tarado", pode ser que o receio de que a mulher "do minuto" a ser estuprada seja você nem passe pela sua cabeça.
Pode ser que você concorde que se uma mulher é violentada, de alguma forma a culpa é dela: ou pela roupa que usou, pelo lugar que estava, pelo quanto bebeu.
Pode ser que você esteja acostumada com a ideia de que quando você for para uma festa ou local onde haja muita gente amontoada, é quase fato que vão passar a mão em você.

Pode ser que você não se importe de ganhar aproximadamente 70% do que um homem ganha na mesma função, ou não se importe que a maioria dos cargos de chefia pertencem a homens.

Pode ser que você não se importe de fazer a maioria ou todas as tarefas domésticas, apesar de você também trabalhar fora. Pode ser que você nem ligue de cumprir essa dupla-jornada. Pode ser que você esteja tão condicionada a acreditar que cuidar da casa é tarefa sua (apesar de duas pessoas morarem lá), que quando o seu parceiro lava um prato ou cozinha um jantar, você esquece que foi você que lavou todos os outros na semana e cozinhou todos os outros jantares, e ache ele incrível. Pode ser que você acredite quando ele diz que não faz porque "não sabe", ou que você acabe fazendo você mesma pq quando ele faz, faz mal feito. É curioso que um homem que tenha tantas habilidades, tão inteligente, não seja capaz de uma atividade tão simples...mas talvez você faça com amor e nem ligue pra isso.

Pode ser que você nem preste atenção mais para as publicidades, que mostram mulheres como objetos e pedaços de carne; ou como mães-cuidadoras-do-lar; ou como brancas, magras, sempre lindas, maquiadas e escovadas.

Pode ser que você nunca tenha percebido que quase todas as personagens femininas de filmes, séries e livros foram todas escritas por homens.
Pode ser que você não perceba como essa ótica masculina sob as mulheres sempre as mostra como rivais, competindo entre si por um homem, e este último é claro, sendo sempre a grande chave para a felicidade da personagem.
Pode ser que você não acredite que muito do que cada um é seja um conjunto de tudo aquilo que essa pessoa viveu, leu, assistiu, e que portanto, sua visão de si mesma e da feminilidade foi em grande parte construída pela narrativa de homens.

Pode ser que essa imagem de mulher que a sociedade nos passa (feminina, delicada, de cabelos longos, maternal, carinhosa, magra-mas-com-curvas, uma dama na rua e uma puta na cama, maquiada sem excessos, com esmalte nas unhas e depilada) esteja OK pra você, pode ser que você se encaixe nela e ache todo esse "universo feminino" incrível.

Pode ser que você concorde com os double-standards usados para falar de homens e mulheres. Pode ser que você não ligue que, com uma mesma atitude, um homem seja "apenas homem" e uma mulher seja vagabunda, um homem seja determinado e líder e uma mulher seja teimosa e mandona.

Pode ser que você não se importe com piadinhas que dizem que lugar de mulher é na cozinha, ou que mulher é tudo interesseira e fofoqueira, que é tudo víbora; ou até use expressões como "joga que nem menina" e "coisa de mulherzinha".

Pode ser tudo isso, você tem o direito de acreditar em todas essas coisas, de não ver problema em nada e de conviver tranquilamente com essas questões.

Mas entenda que nem todas as mulheres se sentem bem com essas "pequenas" desigualdades.
Quando alguma mulher se sentir incomodada, não queira impor sua visão de mundo e dizer que o sofrimento dela é besteira.
E quando você ver mulheres se unindo, dizendo que essas coisas as afetam, destróem sua auto-estima, as agridem; e lutando contra essas situações, entenda.
Entenda que porque algo não dói pra você não quer dizer que não dói para a maioria.

Se as coisas acima DEIXAREM de acontecer, vai ser ruim pra você?
Então que tal assim: se não te incomoda, não lute.
Mas não invalide a luta de outras mulheres, que podem inclusive estar construindo uma sociedade melhor para você mesma.

"Chatos"

Se você olhar pra trás, para a história, você vai ver que todos os movimentos que lutaram e conseguiram mudanças culturais e sociais - que mudaram a vida de muita gente - foram em algum momento taxados de "chatos" pelas próprias pessoas que visavam ajudar.

Quando as feministas lutaram pelo direito da mulher ao voto, o direito de poder trabalhar fora, o direito de não ter que obedecer seu marido, entre outras coisas que hoje todas as mulheres se beneficiam; haviam muitas mulheres que achavam o movimento feminista um "bando de chatas".
Quando os negros abolicionistas lutaram contra a escravidão, haviam diversos negros que os achavam "causeiros", que a vida era assim mesmo, que eles só estavam comprando briga.
Quando o movimento LGBT lutava para poder se assumir sem perder o emprego ou sem morrer espancado (note que ainda não chegamos lá né), haviam homossexuais que achavam aquilo uma grande baderna, gente chata que queria chamar a atenção e que o jeito era se esconder mesmo, viver no armário e pronto.

Isso se repete através da história, com qualquer grupo que tenha sido históricamente privado de direitos.
Sempre aconteceu de haverem pessoas que seriam futuramente beneficiadas pelas mudanças promovidas por esses movimentos, chamarem quem participava dos movimentos de chatos - e continua acontecendo.

Você não é obrigada a ser feminista, ou a lutar contra a desigualdade, o racismo, a discriminação.
Mas você realmente quer ser a pessoa que chama quem luta de "chatos"?

Você pode não querer ir atrás das informações, se educar, entender o contexto histórico e social de porque algumas coisas são como são, e quais são as grandes e as pequenas ações que podemos fazer para mudar essa cultura.
Mas quando alguém vier até você te ensinar, ou mesmo te dar um toque sobre uma atitude simples, você vai se recusar a aprender?

Lá na frente, quando você estiver vivendo uma vida melhor porque um "bando de chatos" foi atrás de mudar uma cultura e um mind-set, você vai querer ter sido a pessoa que além de não ajudar... atrapalhou?


terça-feira, 11 de agosto de 2015

Ideologia de gênero - de novo

Confesso que às vezes tenho vergonha de pertencer ao grupo "cristão".

Para evitar telefone sem fio: não tenho vergonha de Cristo ou da minha fé -muito pelo contrário.
Mas tenho vergonha SIM de pertencer à um grupo que com frequência demais se comporta de maneira preconceituosa e se empenha em disseminar desinformação.
Jesus é um cara maravilhoso; mas seus seguidores, olha, tá difícil.

Enquanto se distribuem jornaizinhos na igreja incentivando os fiés a lutarem contra a "ideologia de gênero", sabe qual é a real?

O que teve mesmo foi um inciso do artigo 2 no PNE que tinha como diretriz exatamente isso aqui ó: "a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual".

Sim, meus amigos de fé, morram de vergonha: foi por causa disso aí todo o escarcéu da Bancada da Bíblia.
Essa é a frase que traduziram pra você como sendo "o governo tentando influenciar nossas crianças a serem neutras ou homossexuais", e você acreditou sem pesquisar.

E sabe porque estava escrito isso no PNE?

Porque enquanto você mostra sua indignação contra a atriz transexual que encenou a crucificação na Parada LGBT, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Sim, NO MUNDO.

Enquanto você brada bravamente contra uma suposta ideologia (sem nem saber do que se trata e quem a defende), a cada 28 horas um homossexual é assassinado por homofóbicos ou comete suicídio por não aguentar o peso de uma sociedade que o define como aberração, uma família que o expulsa de casa, colegas de escola que destróem sua auto-estima diariamente.

Porque enquanto você acredita nessa lenda de ideologia de gênero maligna e destruidora de lares, tem sites dedicados à promover o estupro corretivo em lésbicas: é, isso mesmo, pessoas que, abraçando a MESMA causa que você, dizem que lésbicas devem ser estupradas para aprenderem a gostar de homem, como é "correto e natural na Lei de Deus".

Nós, cristãos, somos 86,8% da população.
O Brasil não teria esses dados escabrosos de morte e violência contra a população LGBT se nós não estivéssemos sendo coniventes com isso.
 Nós estamos.

E não só não estamos fazendo nada para mudar esses dados, como estamos sendo contra uma ação que busca acabar com o preconceito já na infância.
Que mal, me expliquem, há em ensinar nossas crianças a NÃO DISCRIMINAR??
A não tratar o colega como aberração??

Nós, cristãos, não só somos coniventes com essas mortes: somos cúmplices.
Vamos parar de envergonhar o nome de Cristo, por favor.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Breve mind-fuck para cristãos racionais: ABORTO

Introdução

Esta é uma breve reflexão feita acerca do assunto da legalização do aborto.
Não vou fazer nenhum discurso tradicional pró-escolha, dando todo o embasamento científico, todas as evidências positivas de países que legalizaram, ou até comparando que tipos de países tem aborto legal com os que não tem: acredito que com esses argumentos já existem muitos artigos muito melhores que o meu viria a ser.

Aqui a discussão é direcionada para cristãos, que, por dogma, são contra o aborto.
Mas não é pra cristãos "vingativos" ou "punitivos" (que eu pessoalmente acho uma contradição em termos, mas enfim) que defendem pena de morte e coisas assim.
É para cristãos que realmente seguem a parte que prega amor ao próximo e "não atirar a primeira pedra". Cristãos que acreditam que TODA vida tem valor, e que nós não temos autoridade para definir quem vive e quem morre.

E apenas um adendo antes de começar: a discussão não é se devemos ser contra ou a favor do aborto EM SI - ninguém é a favor do aborto. A discussão é a respeito da legalização/criminalização do aborto e suas consequências.

***

No Brasil - onde o aborto é crime-, estima-se que ocorram cerca de 1 milhão de abortos clandestinos por ano. A ONU estima também que morram 200 mil mulheres por ano, em decorrência de complicações em abortos clandestinos..

Ou seja, podemos presumir que mesmo na ilegalidade, as mulheres VÃO abortar - pois é isto que acontece, essa é a realidade dos fatos, como vimos acima - e que muitas destas mulheres que abortam, morrem.
São 200 mil mulheres que perdem a vida, e portanto mais 200 mil embriões/fetos.

Portanto, quando digo que sou a favor da legalização do aborto, estou dizendo que acho que essas mulheres - que já iam abortar de qualquer jeito - deveriam ter direito a um aborto seguro, para não morrerem.
Assim perderíamos apenas os embriões (lembrando que antes das 12 semanas o que há lá não é nem considerado feto, e sim um embrião) - e não mais 200 mil mulheres além deles.

Não vou entrar no mérito de se você considera que um embrião é uma vida ou não - o que por si só já causa polêmica, já que existem divergências entre a interpretação científica/médica e a religiosa. E assuntos como legalização/criminalização são assuntos de estado, e o estado é laico.

Vou partir do pressuposto que você, como cristão, acredita que sim, um embrião é uma vida.
Ou seja, com o aborto ilegal, perdemos 1 milhão e 200 mil vidas por ano: 1 milhão de embriões, mais as 200 mil mulheres.
Com aborto legal, perderíamos 1 milhão de vidas - as dos embriões -  mas estaríamos "salvando" 200 mil vidas.

Quando usamos este raciocínio, o que muitas pessoas vão pensar é que essas mulheres que estamos "salvando" não merecem ser salvas, pois morrer abortando foi uma escolha delas, elas cometeram um crime contra a vida e sabiam do risco. Logo, elas mereceram morrer.

Logo, como cristãos racionais, quando a gente diz que achamos que o aborto deve seguir ilegal, e que essas mulheres devem continuar morrendo (com seus embriões), estamos basicamente dizendo que essas mulheres merecem pena de morte.

Porque a morte do embrião vai acontecer de qualquer jeito - não estamos evitando isso. Só estamos dizendo que já que este embrião vai morrer, essa mulher tem que morrer junto.

Estamos julgando e condenando estas mulheres à morte.
E isso, ao meu ver, é a coisa menos cristã a ser feita.

***


Algumas fontes:

http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/por-dentro-das-celulas/aborto-no-brasil-mortes-em-silencio

http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,onu-critica-legislacao-brasileira-e-cobra-pais-por-mortes-em-abortos-de-risco,837316



sexta-feira, 31 de julho de 2015

A história de vida de A.

Ao ficar presa no trânsito com uma pessoa com quem trabalho, ela resolveu me contar sua história.
E ao mesmo tempo que não quero expô-la sem autorização, eu simplesmente precisava por pra fora: uma história tão real e tão trágica.... 

Então vamos lá: estes são os fragmentos da história de A. uma mulher pobre e negra.

****

Ela veio de uma família muito pobre de uma pequena cidade de Minas Gerais. MUITO pobre. Eles não tinham o que comer, literalmente.
Ela não mostrou constragimento ao me contar que se casou em busca de uma vida melhor - nada a ver com amor ou romance - ela só queria estar com alguém que a desse o que comer.
Aos 19, se casou com um homem de 51, e teve uma filha.
Este homem era muito agressivo, e batia nela com frequência. Até que um dia, tentou lhe matar.
Nesta hora ela me mostrou cicatrizes nos braços e nas mãos, onde ela levou 6 facadas, ao proteger seu rosto e colo.
Ela conseguiu pegar sua filha e fugir.

Com a ajuda de sua mãe, se mudou para São Paulo com uma filha bebê.
Sem ter como se manter, encontrou outro homem que prometeu cuidar dela, e com ele teve mais um filho.
Porém, este se mostrou tão agressivo quando o anterior, e quando ela disse que queria se separar, ele disse que o filho ficaria com ele.
Ela disse que brigaria pela guarda da criança na justiça - ao que ele deu a seguinte resposta: "você pode até conseguir a guarda na justiça, mas não vai conseguir a criança. Porque com seu primeiro marido, a polícia chegou a tempo de te levar para o hospital, comigo eles só vão encontrar seu corpo."
E com esta ameaça ela foi obrigada a desistir da guarda do filho.

Lá estava ela, mais uma vez vivendo em porões de fábrica com sua filha, trabalhando por qualquer trocado para se manter viva, e para manter sua filha - que a essa altura, já tinha 9 anos.
Pela terceira vez, ela se casou com um homem em troca da garantia de ter um prato de comida para ela e sua filha.
Este terceiro marido era branco e judeu - e a relação dos dois era praticamente de escravidão.
Ele a humilhava com frequência, a chamava de macaca, dizia que sua família tinha nojo dela porque ela era negra.
A. era obrigada a "servir" seu marido de todas as formas, até as mais degradantes: quando ele ia ao banheiro cagar (!), ao terminar a chamava "A. tem serviço aqui para você!"
E ela ia até ele - que estava agachado no bidê - e limpava sua bunda.
Ele fazia questão que ela limpasse com as próprias mãos, não queria que ela usasse papel, toalha ou pano.

Ao viajar com a família dele - que falava outra língua-, todos a insultavam com frequência, e todos estavam sempre rindo dela. Quando ela ria junto, mesmo sem entender o que estava sendo dito, seu marido a reprimia e dizia "você está rindo porque?", e em seguida lhe contava as atrocidades que falavam dela.
"Não precisamos ir ao zoólogico, já estamos andando todo o tempo com uma macaca"
"Como você consegue ficar com essa macaca imunda?"

A agressão física de seus dois primeiros maridos havia sido substituída pela agressão psicológica, pela humilhação.
Quando perguntei porque ela tolerava aquilo, ela dizia: sem ele eu não consigo me manter. É melhor aguentar.
E ficaram juntos por 22 anos, até que ela, já mais experiente em seu ofício, e após seu marido jogar o filho de A. para fora de casa o chamando de macaco, ela disse que não aguentaria mais aquela humilhação em troca de um prato de comida. Que ele podia ir embora.

Ele foi. Voltou 3 meses depois, doente, disse que a amava e pediu que ela lhe cuidasse no fim da vida. Ela o aceitou, e cuidou dele até ele morrer, alguns meses depois.
Perguntei se ela ficou triste quando ele morreu: "ah, até com o sofrimento a gente acostuma né, e quando ele morreu eu chorei muito".
Apesar dos 22 anos de relação estável, ela conseguiu ficar apenas com o apartamente em que morava, já que a família dele a odiava por ser "preta" e tratou de travar o processo. Ela até hoje nunca viu um centavo.

Mas ela conta que foi após a morte dele que ela finalmente conheceu a felicidade. Com 50 anos, finalmente era uma mulher livre, que conseguia se manter sozinha. Disse que foi muito feliz, saiu muito com as amigas, fazia bate-e-voltas para a praia, visitava os netos em Guarulhos.

Hoje ela se converteu para uma igreja evangélica, e diz que está mais caseira: prefere ficar em casa, trabalhando e cuidando de seus gatinhos. E diz que hoje, graças à Deus, é feliz.

****

Quando a deixei em casa, estava extremamente abalada de ouvir essa história de uma mulher tão doce.
Tive vontade de chorar, por ela e por todas as mulheres, todos os pobres, todos os negros.
Chorar pelo mundo em que vivemos, em que as pessoas podem ser tão cruéis, em que a pobreza é tanto que uma pessoa troca sua dignidade por um prato de comida.

Depois tive raiva: tive raiva de todas as pessoas que insistem que as "oportunidade são iguais para todos".
Meu Deus, só é óbvio pra mim o quão diferente seria essa história se ela fosse homem? Se ela tivesse condições de se sustentar? Se ela não fosse negra?

Pra mim essa mulher merecia todas as cotas e "benefícios" do mundo: bolsa família, cota habitacional, cota pra poder estudar, uma polícia que a proteja da violência específica que ela sofreu, um sistema judiciário que a proteja das humilhações e do racismo que ela passou.... TODOS os auxílios que eu consigo pensar (que as pessoas tem coragem de ser contra), mesmo com todos eles, essa mulher não estaria em pé de igualdade com uma mulher como eu, que dirá com um homem.
Mesmo assim a meritocracia não viria: ela estaria para sempre em desvantagem, por ter nascido no contexto em que nasceu, com um sexo subjugado e inferiorizado, que merece ser espancado e agredido, com uma cor que a fez ouvir humilhações sua vida inteira.

Quantos privilégios a gente não usufrui em comparação à uma pessoa dessas?

Eu não quero saber quantos brancos vão perder suas vagas para negros por cotas, eu não quero saber quantos beneficiários do bolsa família estão dando golpe, não quero saber dos infames casos em que lei Maria da Penha é usada em falsidade, eu não quero saber quantos funcionários "despreparados e mal-agradecidos" você já teve e o quanto você acha que é por isso que pobre é pobre: se a vida de A. pudesse ter sido um pouquinho menos sofrida, o mundo já estaria um pouco mais justo.