quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Você não precisa ser feminista

Feministas são pessoas que lutam contra o machismo.
Logo, você não precisa ser feminista.

Afinal, pode ser que você não se incomode com o machismo.
Pode ser que você nem o veja, e portanto nem acredite que ele existe.

Pode ser que você não se importe que a cada minuto uma mulher é estuprada no Brasil, ou que 88% das vítimas de estupro sejam mulheres e 98% dos estupradores sejam homens.
Pode ser que você não se importe que a violência doméstica é uma das maiores causas de mortes não-naturais de mulheres.
Pode ser que você acredite que, apesar do dados mostrarem que são sempre homens agredindo mulheres, isso não passa de uma coincidência, e não tem nada a ver com a nossa cultura ou com a forma que a sociedade enxerga as mulheres.

Pode ser que você não se ligue para as cantadas na rua, pode ser que você ache que "homens são assim mesmo", ache até legal, e pode ser que você nem ande tanto na rua assim pra sentir isso na pele.
Pode ser que você não ande em locais mais isolados e não sinta medo toda vez que um homem olha pra você daquele jeito "tarado", pode ser que o receio de que a mulher "do minuto" a ser estuprada seja você nem passe pela sua cabeça.
Pode ser que você concorde que se uma mulher é violentada, de alguma forma a culpa é dela: ou pela roupa que usou, pelo lugar que estava, pelo quanto bebeu.
Pode ser que você esteja acostumada com a ideia de que quando você for para uma festa ou local onde haja muita gente amontoada, é quase fato que vão passar a mão em você.

Pode ser que você não se importe de ganhar aproximadamente 70% do que um homem ganha na mesma função, ou não se importe que a maioria dos cargos de chefia pertencem a homens.

Pode ser que você não se importe de fazer a maioria ou todas as tarefas domésticas, apesar de você também trabalhar fora. Pode ser que você nem ligue de cumprir essa dupla-jornada. Pode ser que você esteja tão condicionada a acreditar que cuidar da casa é tarefa sua (apesar de duas pessoas morarem lá), que quando o seu parceiro lava um prato ou cozinha um jantar, você esquece que foi você que lavou todos os outros na semana e cozinhou todos os outros jantares, e ache ele incrível. Pode ser que você acredite quando ele diz que não faz porque "não sabe", ou que você acabe fazendo você mesma pq quando ele faz, faz mal feito. É curioso que um homem que tenha tantas habilidades, tão inteligente, não seja capaz de uma atividade tão simples...mas talvez você faça com amor e nem ligue pra isso.

Pode ser que você nem preste atenção mais para as publicidades, que mostram mulheres como objetos e pedaços de carne; ou como mães-cuidadoras-do-lar; ou como brancas, magras, sempre lindas, maquiadas e escovadas.

Pode ser que você nunca tenha percebido que quase todas as personagens femininas de filmes, séries e livros foram todas escritas por homens.
Pode ser que você não perceba como essa ótica masculina sob as mulheres sempre as mostra como rivais, competindo entre si por um homem, e este último é claro, sendo sempre a grande chave para a felicidade da personagem.
Pode ser que você não acredite que muito do que cada um é seja um conjunto de tudo aquilo que essa pessoa viveu, leu, assistiu, e que portanto, sua visão de si mesma e da feminilidade foi em grande parte construída pela narrativa de homens.

Pode ser que essa imagem de mulher que a sociedade nos passa (feminina, delicada, de cabelos longos, maternal, carinhosa, magra-mas-com-curvas, uma dama na rua e uma puta na cama, maquiada sem excessos, com esmalte nas unhas e depilada) esteja OK pra você, pode ser que você se encaixe nela e ache todo esse "universo feminino" incrível.

Pode ser que você concorde com os double-standards usados para falar de homens e mulheres. Pode ser que você não ligue que, com uma mesma atitude, um homem seja "apenas homem" e uma mulher seja vagabunda, um homem seja determinado e líder e uma mulher seja teimosa e mandona.

Pode ser que você não se importe com piadinhas que dizem que lugar de mulher é na cozinha, ou que mulher é tudo interesseira e fofoqueira, que é tudo víbora; ou até use expressões como "joga que nem menina" e "coisa de mulherzinha".

Pode ser tudo isso, você tem o direito de acreditar em todas essas coisas, de não ver problema em nada e de conviver tranquilamente com essas questões.

Mas entenda que nem todas as mulheres se sentem bem com essas "pequenas" desigualdades.
Quando alguma mulher se sentir incomodada, não queira impor sua visão de mundo e dizer que o sofrimento dela é besteira.
E quando você ver mulheres se unindo, dizendo que essas coisas as afetam, destróem sua auto-estima, as agridem; e lutando contra essas situações, entenda.
Entenda que porque algo não dói pra você não quer dizer que não dói para a maioria.

Se as coisas acima DEIXAREM de acontecer, vai ser ruim pra você?
Então que tal assim: se não te incomoda, não lute.
Mas não invalide a luta de outras mulheres, que podem inclusive estar construindo uma sociedade melhor para você mesma.

"Chatos"

Se você olhar pra trás, para a história, você vai ver que todos os movimentos que lutaram e conseguiram mudanças culturais e sociais - que mudaram a vida de muita gente - foram em algum momento taxados de "chatos" pelas próprias pessoas que visavam ajudar.

Quando as feministas lutaram pelo direito da mulher ao voto, o direito de poder trabalhar fora, o direito de não ter que obedecer seu marido, entre outras coisas que hoje todas as mulheres se beneficiam; haviam muitas mulheres que achavam o movimento feminista um "bando de chatas".
Quando os negros abolicionistas lutaram contra a escravidão, haviam diversos negros que os achavam "causeiros", que a vida era assim mesmo, que eles só estavam comprando briga.
Quando o movimento LGBT lutava para poder se assumir sem perder o emprego ou sem morrer espancado (note que ainda não chegamos lá né), haviam homossexuais que achavam aquilo uma grande baderna, gente chata que queria chamar a atenção e que o jeito era se esconder mesmo, viver no armário e pronto.

Isso se repete através da história, com qualquer grupo que tenha sido históricamente privado de direitos.
Sempre aconteceu de haverem pessoas que seriam futuramente beneficiadas pelas mudanças promovidas por esses movimentos, chamarem quem participava dos movimentos de chatos - e continua acontecendo.

Você não é obrigada a ser feminista, ou a lutar contra a desigualdade, o racismo, a discriminação.
Mas você realmente quer ser a pessoa que chama quem luta de "chatos"?

Você pode não querer ir atrás das informações, se educar, entender o contexto histórico e social de porque algumas coisas são como são, e quais são as grandes e as pequenas ações que podemos fazer para mudar essa cultura.
Mas quando alguém vier até você te ensinar, ou mesmo te dar um toque sobre uma atitude simples, você vai se recusar a aprender?

Lá na frente, quando você estiver vivendo uma vida melhor porque um "bando de chatos" foi atrás de mudar uma cultura e um mind-set, você vai querer ter sido a pessoa que além de não ajudar... atrapalhou?


terça-feira, 11 de agosto de 2015

Ideologia de gênero - de novo

Confesso que às vezes tenho vergonha de pertencer ao grupo "cristão".

Para evitar telefone sem fio: não tenho vergonha de Cristo ou da minha fé -muito pelo contrário.
Mas tenho vergonha SIM de pertencer à um grupo que com frequência demais se comporta de maneira preconceituosa e se empenha em disseminar desinformação.
Jesus é um cara maravilhoso; mas seus seguidores, olha, tá difícil.

Enquanto se distribuem jornaizinhos na igreja incentivando os fiés a lutarem contra a "ideologia de gênero", sabe qual é a real?

O que teve mesmo foi um inciso do artigo 2 no PNE que tinha como diretriz exatamente isso aqui ó: "a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual".

Sim, meus amigos de fé, morram de vergonha: foi por causa disso aí todo o escarcéu da Bancada da Bíblia.
Essa é a frase que traduziram pra você como sendo "o governo tentando influenciar nossas crianças a serem neutras ou homossexuais", e você acreditou sem pesquisar.

E sabe porque estava escrito isso no PNE?

Porque enquanto você mostra sua indignação contra a atriz transexual que encenou a crucificação na Parada LGBT, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Sim, NO MUNDO.

Enquanto você brada bravamente contra uma suposta ideologia (sem nem saber do que se trata e quem a defende), a cada 28 horas um homossexual é assassinado por homofóbicos ou comete suicídio por não aguentar o peso de uma sociedade que o define como aberração, uma família que o expulsa de casa, colegas de escola que destróem sua auto-estima diariamente.

Porque enquanto você acredita nessa lenda de ideologia de gênero maligna e destruidora de lares, tem sites dedicados à promover o estupro corretivo em lésbicas: é, isso mesmo, pessoas que, abraçando a MESMA causa que você, dizem que lésbicas devem ser estupradas para aprenderem a gostar de homem, como é "correto e natural na Lei de Deus".

Nós, cristãos, somos 86,8% da população.
O Brasil não teria esses dados escabrosos de morte e violência contra a população LGBT se nós não estivéssemos sendo coniventes com isso.
 Nós estamos.

E não só não estamos fazendo nada para mudar esses dados, como estamos sendo contra uma ação que busca acabar com o preconceito já na infância.
Que mal, me expliquem, há em ensinar nossas crianças a NÃO DISCRIMINAR??
A não tratar o colega como aberração??

Nós, cristãos, não só somos coniventes com essas mortes: somos cúmplices.
Vamos parar de envergonhar o nome de Cristo, por favor.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Breve mind-fuck para cristãos racionais: ABORTO

Introdução

Esta é uma breve reflexão feita acerca do assunto da legalização do aborto.
Não vou fazer nenhum discurso tradicional pró-escolha, dando todo o embasamento científico, todas as evidências positivas de países que legalizaram, ou até comparando que tipos de países tem aborto legal com os que não tem: acredito que com esses argumentos já existem muitos artigos muito melhores que o meu viria a ser.

Aqui a discussão é direcionada para cristãos, que, por dogma, são contra o aborto.
Mas não é pra cristãos "vingativos" ou "punitivos" (que eu pessoalmente acho uma contradição em termos, mas enfim) que defendem pena de morte e coisas assim.
É para cristãos que realmente seguem a parte que prega amor ao próximo e "não atirar a primeira pedra". Cristãos que acreditam que TODA vida tem valor, e que nós não temos autoridade para definir quem vive e quem morre.

E apenas um adendo antes de começar: a discussão não é se devemos ser contra ou a favor do aborto EM SI - ninguém é a favor do aborto. A discussão é a respeito da legalização/criminalização do aborto e suas consequências.

***

No Brasil - onde o aborto é crime-, estima-se que ocorram cerca de 1 milhão de abortos clandestinos por ano. A ONU estima também que morram 200 mil mulheres por ano, em decorrência de complicações em abortos clandestinos..

Ou seja, podemos presumir que mesmo na ilegalidade, as mulheres VÃO abortar - pois é isto que acontece, essa é a realidade dos fatos, como vimos acima - e que muitas destas mulheres que abortam, morrem.
São 200 mil mulheres que perdem a vida, e portanto mais 200 mil embriões/fetos.

Portanto, quando digo que sou a favor da legalização do aborto, estou dizendo que acho que essas mulheres - que já iam abortar de qualquer jeito - deveriam ter direito a um aborto seguro, para não morrerem.
Assim perderíamos apenas os embriões (lembrando que antes das 12 semanas o que há lá não é nem considerado feto, e sim um embrião) - e não mais 200 mil mulheres além deles.

Não vou entrar no mérito de se você considera que um embrião é uma vida ou não - o que por si só já causa polêmica, já que existem divergências entre a interpretação científica/médica e a religiosa. E assuntos como legalização/criminalização são assuntos de estado, e o estado é laico.

Vou partir do pressuposto que você, como cristão, acredita que sim, um embrião é uma vida.
Ou seja, com o aborto ilegal, perdemos 1 milhão e 200 mil vidas por ano: 1 milhão de embriões, mais as 200 mil mulheres.
Com aborto legal, perderíamos 1 milhão de vidas - as dos embriões -  mas estaríamos "salvando" 200 mil vidas.

Quando usamos este raciocínio, o que muitas pessoas vão pensar é que essas mulheres que estamos "salvando" não merecem ser salvas, pois morrer abortando foi uma escolha delas, elas cometeram um crime contra a vida e sabiam do risco. Logo, elas mereceram morrer.

Logo, como cristãos racionais, quando a gente diz que achamos que o aborto deve seguir ilegal, e que essas mulheres devem continuar morrendo (com seus embriões), estamos basicamente dizendo que essas mulheres merecem pena de morte.

Porque a morte do embrião vai acontecer de qualquer jeito - não estamos evitando isso. Só estamos dizendo que já que este embrião vai morrer, essa mulher tem que morrer junto.

Estamos julgando e condenando estas mulheres à morte.
E isso, ao meu ver, é a coisa menos cristã a ser feita.

***


Algumas fontes:

http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/por-dentro-das-celulas/aborto-no-brasil-mortes-em-silencio

http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,onu-critica-legislacao-brasileira-e-cobra-pais-por-mortes-em-abortos-de-risco,837316