sexta-feira, 20 de março de 2015

A falácia contida em "Eu só vejo a raça humana"

Ouço muita gente falando que "a menor das minorias é o indivíduo", que "somos todos da mesma raça humana" e "somos todos iguais".
As frases em si são bem bonitas, e assim, puramente, eu concordo plenamente com elas, e acho que se TODOS pensassem assim, muitos dos problemas do mundo estariam resolvidos.

Porém, essas frases geralmente são usadas por pessoas que querem invalidar a luta ou a voz de alguma minoria, mas de uma "forma fofa" (como se silenciar a vivência de alguém pudesse ser fofo).

Eu entendo o que essas pessoas querem dizer, e sua intenção é das melhores.

Elas querem dizer que se pararmos de falar sobre gênero, raça, orientação sexual, automaticamente o racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia e todas as demais opressões desapareceriam.
Elas querem dizer que essas opressões já foram superadas, são parte do passado, e hoje em dia só estão nos olhos de quem vê.
Elas querem dizer que já está claro que somos todos iguais, então quando as minorias querem pedir ações afirmativas para protegê-los, essas minorias só estão sendo preconceituosas com elas mesmas (o que me parece curioso é achar que se sabe mais sobre a opressão e a luta do que as próprias pessoas que vivenciam isso todos os dias).
Elas querem dizer que todo mundo tem problemas, todo mundo tem dificuldade e todos estão expostos aos mesmos riscos, portanto proteger um grupo em especial seria uma forma de privilégio, e até uma discriminação.

Em suma, eles querem dizer que somos todos iguais, então não tem porque tratar diferente.

Uma coisa interessante, é que esse discurso parece infalível - quem (que não seja fanático religioso ou um racista declarado) em sã consciência discordaria desse pensamento?

Essa fala tem uma falha bem difícil de detectar - ela se sustenta em cima de uma falácia.
(Falácia: um raciocínio errado com aparência de verdadeiro)

A falácia que sustenta este argumento é chamada de Falácia do Mundo Justo.
O que isso quer dizer?

Quer dizer que todo esse discurso acima seria super verdadeiro e super válido, se vivêssemos em um mundo/sociedade justa.

Neste suposto mundo justo, todos seriam tratados com igualdade de direitos, igualdade de respeito, todos teriam as mesmas possibilidades e oportunidades, e veríamos todas as cores, gêneros e sexualidades representadas (em proporções iguais ou pelo menos muito próximas) na literatura, nos filmes, nas novelas, nas propagandas, nas empresas, nos restaurantes bacanas, no governo, nas escolas e universidades.

E neste mundo justo, faria absolutamente todo sentido o raciocínio acima, de que "somos todos iguais", e que qualquer ação que privilegiasse um grupo em detrimento de outro seria absolutamente injusto.

Ok? Ok.

Poreeeeeém, acho que todos podemos concordar que esse "mundo justo" que eu descrevi acima não é o mundo em que vivemos.
E nós não vivemos neste mundo, justamente porque há uma série de fatores históricos, culturais e sociais que fizeram (e ainda fazem) com que as pessoas percebam todas essas diferenças, mesmo sem querer, mesmo quando dizem que não percebem.
E perceber as diferenças não seria um problema, pois nós somos diferentes mesmo.

O problema é que algumas características vem carregadas de uma série de estereótipos, por causa dos mesmos fatores históricos, culturais e sociais.
E esses estereótipos muitas vezes não são bacanas com alguns grupos. Muitas vezes esses estereótipos dizem até que certos grupos não deveriam existir.

Ninguém está ileso a esses estereótipos, pois todos vivemos em sociedade, e todos fomos educados e criados em sociedade, e em maior ou menor escala, expostos a estes conceitos estereotipados - que também em maior ou menor grau, entraram na nossa cabeça e se instalaram lá.

Portanto, TODOS NÓS reproduzimos em nossas ações e em nossas falas uma série de pequenas (ou grandes) discriminações.
Portanto - a não ser que você tenha se criado sozinho na selva - ninguém está imune e reproduzir conceitos machistas, racistas, homofóbicos.
Nem mesmo as próprias mulheres, nem mesmo os próprios negros, nem mesmo os próprios homossexuais - eles não estão imunes a reproduzir um pensamento que apenas os prejudica, simplesmente porque quando está já instaladinho na sua cabeça, não é tão fácil perceber que tal pensamento te limita.



E um grande problema é acreditar que esses "poucos direitinhos a menos", essas "pequenas" discriminações, essas piadinhas, essas palavras - nada disso faz diferença na construção da auto-estima e na visão da própria capacidade de cada um.

Tem até uma série de estudos feitos com crianças que mostram como algumas palavras que usamos repetidamente para elogiá-las ou repreendê-las podem fazer uma enorme diferença em como essa criança se relaciona com o mundo, como ela desempenha na escola e até em como ela enxerga sua própria capacidade.

Essas "pequenas coisas" (que só são pequenas se você estiver comparando com os absurdos que existiam há alguns anos) fazem TODA a diferença em como uma pessoa vai ver o mundo, e SE VER no mundo.

Portanto, mesmo se você conhece uma mulher machista, um negro racista, um homossexual homofóbico (etc), isso não quer dizer que é válido ignorar todos os outros homossexuais, todos os outros negros e todas as outras mulheres quando estes dizem que existe um problema.

Vamos ouvir mais, e parar de pensar em nós mesmos toda vez que alguém falar de alguma opressão.
Vamos dar credibilidade para a vivência das pessoas, e entender suas demandas, mesmo se você também for um indivíduo com problemas.
Vamos parar de achar que só porque algo não te afeta diretamente, aquilo não existe.
Parar de achar que só porque você não entende determinado conceito, ele não é verdadeiro.
Parar de achar que se algo não é problema pra você, não deveria ser pra ninguém.

Vamos?




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