E ao mesmo tempo que não quero expô-la sem autorização, eu simplesmente precisava por pra fora: uma história tão real e tão trágica....
Então vamos lá: estes são os fragmentos da história de A. uma mulher pobre e negra.
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Ela veio de uma família muito pobre de uma pequena cidade de Minas Gerais. MUITO pobre. Eles não tinham o que comer, literalmente.
Ela não mostrou constragimento ao me contar que se casou em busca de uma vida melhor - nada a ver com amor ou romance - ela só queria estar com alguém que a desse o que comer.
Aos 19, se casou com um homem de 51, e teve uma filha.
Este homem era muito agressivo, e batia nela com frequência. Até que um dia, tentou lhe matar.
Nesta hora ela me mostrou cicatrizes nos braços e nas mãos, onde ela levou 6 facadas, ao proteger seu rosto e colo.
Ela conseguiu pegar sua filha e fugir.
Com a ajuda de sua mãe, se mudou para São Paulo com uma filha bebê.
Sem ter como se manter, encontrou outro homem que prometeu cuidar dela, e com ele teve mais um filho.
Porém, este se mostrou tão agressivo quando o anterior, e quando ela disse que queria se separar, ele disse que o filho ficaria com ele.
Ela disse que brigaria pela guarda da criança na justiça - ao que ele deu a seguinte resposta: "você pode até conseguir a guarda na justiça, mas não vai conseguir a criança. Porque com seu primeiro marido, a polícia chegou a tempo de te levar para o hospital, comigo eles só vão encontrar seu corpo."
E com esta ameaça ela foi obrigada a desistir da guarda do filho.
Lá estava ela, mais uma vez vivendo em porões de fábrica com sua filha, trabalhando por qualquer trocado para se manter viva, e para manter sua filha - que a essa altura, já tinha 9 anos.
Pela terceira vez, ela se casou com um homem em troca da garantia de ter um prato de comida para ela e sua filha.
Este terceiro marido era branco e judeu - e a relação dos dois era praticamente de escravidão.
Ele a humilhava com frequência, a chamava de macaca, dizia que sua família tinha nojo dela porque ela era negra.
A. era obrigada a "servir" seu marido de todas as formas, até as mais degradantes: quando ele ia ao banheiro cagar (!), ao terminar a chamava "A. tem serviço aqui para você!"
E ela ia até ele - que estava agachado no bidê - e limpava sua bunda.
Ele fazia questão que ela limpasse com as próprias mãos, não queria que ela usasse papel, toalha ou pano.
Ao viajar com a família dele - que falava outra língua-, todos a insultavam com frequência, e todos estavam sempre rindo dela. Quando ela ria junto, mesmo sem entender o que estava sendo dito, seu marido a reprimia e dizia "você está rindo porque?", e em seguida lhe contava as atrocidades que falavam dela.
"Não precisamos ir ao zoólogico, já estamos andando todo o tempo com uma macaca"
"Como você consegue ficar com essa macaca imunda?"
A agressão física de seus dois primeiros maridos havia sido substituída pela agressão psicológica, pela humilhação.
Quando perguntei porque ela tolerava aquilo, ela dizia: sem ele eu não consigo me manter. É melhor aguentar.
E ficaram juntos por 22 anos, até que ela, já mais experiente em seu ofício, e após seu marido jogar o filho de A. para fora de casa o chamando de macaco, ela disse que não aguentaria mais aquela humilhação em troca de um prato de comida. Que ele podia ir embora.
Ele foi. Voltou 3 meses depois, doente, disse que a amava e pediu que ela lhe cuidasse no fim da vida. Ela o aceitou, e cuidou dele até ele morrer, alguns meses depois.
Perguntei se ela ficou triste quando ele morreu: "ah, até com o sofrimento a gente acostuma né, e quando ele morreu eu chorei muito".
Apesar dos 22 anos de relação estável, ela conseguiu ficar apenas com o apartamente em que morava, já que a família dele a odiava por ser "preta" e tratou de travar o processo. Ela até hoje nunca viu um centavo.
Mas ela conta que foi após a morte dele que ela finalmente conheceu a felicidade. Com 50 anos, finalmente era uma mulher livre, que conseguia se manter sozinha. Disse que foi muito feliz, saiu muito com as amigas, fazia bate-e-voltas para a praia, visitava os netos em Guarulhos.
Hoje ela se converteu para uma igreja evangélica, e diz que está mais caseira: prefere ficar em casa, trabalhando e cuidando de seus gatinhos. E diz que hoje, graças à Deus, é feliz.
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Quando a deixei em casa, estava extremamente abalada de ouvir essa história de uma mulher tão doce.
Tive vontade de chorar, por ela e por todas as mulheres, todos os pobres, todos os negros.
Chorar pelo mundo em que vivemos, em que as pessoas podem ser tão cruéis, em que a pobreza é tanto que uma pessoa troca sua dignidade por um prato de comida.
Depois tive raiva: tive raiva de todas as pessoas que insistem que as "oportunidade são iguais para todos".
Meu Deus, só é óbvio pra mim o quão diferente seria essa história se ela fosse homem? Se ela tivesse condições de se sustentar? Se ela não fosse negra?
Pra mim essa mulher merecia todas as cotas e "benefícios" do mundo: bolsa família, cota habitacional, cota pra poder estudar, uma polícia que a proteja da violência específica que ela sofreu, um sistema judiciário que a proteja das humilhações e do racismo que ela passou.... TODOS os auxílios que eu consigo pensar (que as pessoas tem coragem de ser contra), mesmo com todos eles, essa mulher não estaria em pé de igualdade com uma mulher como eu, que dirá com um homem.
Mesmo assim a meritocracia não viria: ela estaria para sempre em desvantagem, por ter nascido no contexto em que nasceu, com um sexo subjugado e inferiorizado, que merece ser espancado e agredido, com uma cor que a fez ouvir humilhações sua vida inteira.
Quantos privilégios a gente não usufrui em comparação à uma pessoa dessas?
Eu não quero saber quantos brancos vão perder suas vagas para negros por cotas, eu não quero saber quantos beneficiários do bolsa família estão dando golpe, não quero saber dos infames casos em que lei Maria da Penha é usada em falsidade, eu não quero saber quantos funcionários "despreparados e mal-agradecidos" você já teve e o quanto você acha que é por isso que pobre é pobre: se a vida de A. pudesse ter sido um pouquinho menos sofrida, o mundo já estaria um pouco mais justo.