quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sobre mendigos e suas ex-mulheres

Já há algum tempo eu venho traçando um paralelo que me incomoda.

Seguindo páginas no estilo SP Invisível ou páginas que postam relatos de moradores de rua, percebi um certo padrão:a maioria dos moradores de rua eram homens, e a maioria dizia ter família (ex-mulher e filhos) ainda que não pareciam estar com ela.
Muitos relatavam brigas e desavenças com suas companheiras, que os fizeram sair de casa - claro que para a maioria dos homens que relatam essas desavenças, a "culpa" é da mulher (e claro que a mídia não tardou em classificar moradores de rua como desiludidos amorosos, e até os criadores da SP Invisível relataram que muitos desses homens estão lá "por causa de mulher"), mas não vamos nem entrar nesse mérito rsrs

Como boa feminista, ficava pensando em onde estavam então essas inúmeras mulheres sozinhas com os filhos, únicas responsáveis pelo sustento da família.

Bem, resolvi ir atrás de alguns dados para não ficar no achismo.
Encontrei dados mais confiáveis relativos ao centro de São Paulo, e também relativos ao Brasil.

Unindo as duas pesquisas, alguns dados que encontramos:
- 82% são homens, em SP média de idade de 40 anos, no Brasil mais da metade tem entre 25 e 44 anos.
- A maioria relatou já ter tido uma companheira/esposa, e ter filhos - que não estão com eles nas ruas.
- Os maiores motivos de terem ido para as ruas estava relacionado à: alcoolismo (35,5%), desemprego (29,8%)  e desavenças com familiares (29,1%).

Podemos unir à estes dados alguns outros - que não estão diretamente relacionados, mas podem traçar alguns paralelos.
-5,5 milhões de crianças no Brasil não tem o nome do pai no registro - ou seja, o pai sumiu e a mão cuida da criança sozinha, sem ajuda nem pensão.
-A PNAD aponta que 37,4% das famílias brasileiras tem a mulher como pessoa de referência (o que quer dizer que ela é responsável pela maior ou única renda da família).

***

Não acho que seria correto juntar estes dados para chegar a conclusões - os dados não necessariamente estão relacionados, e poderíamos chegar à conclusões falaciosas.

Mas acho interessante fazer algumas reflexões:

Sabendo que os conceitos disseminados por uma sociedade machista afetam de forma mais grave as mulheres, mas também afetam negativamente os homens, será que o fato da maioria dos moradores de rua serem homens não está diretamente ligado ao machismo?

Será que o machismo não carrega as mulheres de um senso maior de responsabilidade para com a família, de forma que elas não vêem como opção abandoná-la e ir para a rua - enquanto os homens evidentemente não só enxergam esta opção como com alguma frequência a abraçam?

Será que é razoável ser contra o aborto dizendo que se a mulher não quer o filho, pode deixar com o pai? Ou que pelo menos receberá pensão para ajudar a criar o filho "indesejado"?
Será que realmente não estamos fazendo vista grossa para o "aborto masculino", enquanto condenamos o feminino?
Que opções tem um homem que não quer/não pode sustentar um filho, e que opções tem a mulher na nossa sociedade?
Ao negar o direito ao aborto, não estamos transformando uma responsabilidade que seria dos dois (homem e mulher, espermatozóide e óvulo) em uma responsabilidade quase que certamente da mulher?

Não seria curioso o fato que numa sociedade em que as mulheres ainda ganham salários menores que os homens (os salários femininos ainda são 30% menores que os masculinos), e em que as mulheres em geral só conquistaram o direito ao mercado de trabalho à apenas uma ou duas gerações, elas já são quase 40% das pessoas de referência nas famílias?
Essa conta fecharia se todas as famílias tivessem pai presente (tanto na criação quanto financeiramente)? Ou será que essa conta só fecha porque em muitas famílias a mãe é a ÚNICA fonte de renda?

Quando vemos a quantidade de dinheiro público gasto (e que fique claro aqui que não sou contra esse gasto não rs) em abrigos e ações para moradores de rua, não seria relevante considerar que indiretamente o Estado está ajudando os homens em seu sustento pessoal - enquanto as mulheres abandonadas por eles não são ajudadas no seu sustento e no sustento de seus filhos?
Será que o fato de 93% dos titulares do Bolsa Família serem mulheres não é exatamente esta compensação?
Pensando nestas mulheres em situação de pobreza e abandono, não é no mínimo mesquinho maldizer o Bolsa Família?

E abordando uma questão que eu considero bem tosca, mas vamos lá: já ouvi de muitos homens que machismo não existe porque os homens passam por tantas dificuldades quanto as mulheres - e um dos exemplos que sempre dão é este: de que a maioria dos mendigos são homens. Nunca lhes passou pela cabeça que talvez estes homens - que estão sem dúvida em condições lastimáveis e devem ser ajudados - podem ainda assim estar levando a vida de forma mais "fácil" ou com menos responsabilidades do que as mães destes 5,5 milhões de crianças que não tem pai?

E quantitativamente: se existem 1,8 milhões de moradores de rua no Brasil dos quais 82% são homens, existem pouco menos de 1 milhão e meio de homens em situação de rua no país.
Ou seja: 1,5 milhões de homens em situação de rua versus 5,5 milhões de homens que abandonaram suas mulheres grávidas.
Os dois problemas são horríveis e relevantes? Sem dúvida! Mas qual é o maior?
Que gênero está realmente saindo mais prejudicado nessas situações de extrema pobreza?
Você realmente quer usar este argumento para dizer que homens são impostos ao mesmo nível de provações que as mulheres pela nossa sociedade?

***

Enfim, esse texto não tem nenhuma conclusão específica, e nem tem a intenção de diminuir o sofrimento dos moradores de rua - vítimas de um sistema de extrema desigualdade.

É apenas uma reflexão acerca da invisibilidade: se temos matérias e páginas do facebook voltado à tirar da invisibilidade os moradores de rua, quem senão as feministas estão preocupadas em tirar da invisibilidade as mulheres-mães abandonadas?
Quem está olhando por essas mulheres?
O feminismo realmente é "desnecessário"?


Fontes:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/arquivos/mulher/PessoasEmSituacaoDeRua.pdf)
http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/04/29/ult23u2075.jhtm
http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/brasil-tem-5-5-milhoes-de-criancas-sem-pai-no-registro
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv91983.pdf
http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2015/03/salario-das-mulheres-ainda-e-30-menor-que-o-dos-homens.html
http://moradoresderua.org.br/portal/estimativa-de-moradores-de-rua-no-brasil/
http://blog.planalto.gov.br/maioria-dos-beneficiarios-do-bolsa-familia-e-composta-por-mulheres-e-negros-afirma-tereza-campello/

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